Governo tira dinheiro dos trabalhadores para compensar entidades patronais

 Através de um decreto, Temer compensa entidades empresariais com verbas equivalentes ao valor perdido em arrecadação após fim do imposto sindical

A conjuntura moderna quebra as pernas de qualquer teoria clássica. Por exemplo: “(…) a um príncipe é preciso ter o povo como amigo (…)” (O Príncipe, cap. IX). Se, em 1513, Maquiavel descreveu a necessidade de se governar ao lado do povo, hoje, 2018, isso já não é mais necessário. Ou seja, se uma vez esse ditado serviu pra alguma coisa, hoje ‘já era’. Não importa se o ‘príncipe’ Temer tem um dos piores índices de aprovação da história dos presidentes da república, pois esse papo de “ter o povo como amigo” foi substituído por “ter o mercado financeiro como amigo”.

Outro exemplo: teoricamente, para se aprovar uma ‘Reforma Trabalhista’ no Brasil seria preciso “ter o povo como amigo”, certo? Certo. Até porque estamos falando em mudanças nas legislações que atinge a maioria da população brasileira. Mas, devido à ‘conjuntura moderna’, as coisas não são bem assim. A história recente mostra que, na verdade, é preciso ter o “mercado financeiro como amigo” e deixar que ele aplique sua cartilha goela abaixo da sociedade.

Além disso, apoiado pela mídia, o governo Temer consegue agir sem resistência das massas. E para manter esse apoio, ele realiza algumas chamadas manobras de compensação, como é o caso dessa espécie de financiamento para entidades patronais do setor agrícola. A publicação do jornal o Estado de S. Paulo fala do decreto publicado em fevereiro deste ano pelo atual governo e que tem como objetivo destinar “parte dos recursos da qualificação dos trabalhadores rurais para as associações”.

*Basicamente, após o decreto do Temer, a entidade do setor agrícola do Sistema S, o Senar, é obrigada a reservar até 5% do orçamento para o financiamento da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e outros 5% para as federações estaduais. Segundo a Receita Federal, o Senar recebeu R$ 829,1 milhões no ano passado. Em 2017, a maior despesa do Senar foi o programa de qualificação profissional do trabalhador, que recebeu R$ 73,3 milhões.

O decreto presidencial deu à CNA uma fonte de recursos que já existe em outros setores. Na indústria, o Sesi repassa 4% e o Senai transfere 2% do orçamento para a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Sesc e Senac destinam 6% para a Confederação Nacional do Comércio (CNC) ou a federação estadual. Senat e Sest enviam 10% para a Confederação Nacional do Transporte (CNT) – Fonte: Estadão e Receita Federal.  

Culpa da ‘Deforma Trabalhista’

As entidades patronais beneficiadas pelo decreto do governo conseguiram manter o orçamento de 2018 no mesmo patamar do ano passado – quando ainda havia a contribuição sindical. “Não há equilíbrio. Em um país democrático o investimento não ocorreria só de um lado da balança”, explica Adriano Carlesso, presidente do Sindimovec – Sindicato dos Metalúrgicos de Campo Largo. O dirigente aponta ainda que “está cada vez mais claro a intenção de enfraquecer as entidades de defesa dos trabalhadores através da desconstrução dos Sindicatos”.

De acordo com a pesquisa “Impactos da Aplicação da Nova Legislação Trabalhista no Brasil” do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), após mudança na legislação trabalhista houve queda de 60% na arrecadação de sindicatos (somados entidades de defesa dos trabalhadores e patronal). Além disso, cada trabalhador perdeu, em média, R$ 14 em seu salário mensal. Para o Diap, a reforma trabalhista surtiu efeito “inverso” ao prometido; a economia brasileira não foi dinamizada e muito menos modernizaram as relações de trabalho.

Prova disso é o crescimento do trabalho informal, como mostra pesquisa realizada pelo Pnad Contínua do IBGE, divulgada no dia 31 de julho. Hoje o número de brasileiros que trabalham sem carteira assinada cresceu 2,6% em comparação ao trimestre anterior e atinge 11 milhões de pessoas. O desemprego, números de junho deste ano, atingiu 13 milhões. O rendimento médio real dos brasileiros ocupados é de R$ 2.198.

Ataque aos Sindicatos de trabalhadores

Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), os sindicatos patronais receberam este ano perto de 30% do valor arrecadado com imposto sindical em 2017. Já as organizações laborais perderam quase 90% desta fonte de receita. “Como havia uma expectativa em relação ao julgamento do STF e o resultado foi negativo, daqui pra frente, as demissões devem se intensificar“, diz José Silvestre, coordenador de relações sindicais do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Os problemas para os sindicatos e para a classe trabalhadora vêm numa crescente. Entidades de classe empregavam cerca de 110 mil funcionários com carteira assinada em dezembro de 2016 – segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais). No período de 12 meses, até maio deste ano, foram 5,9 mil demissões líquidas, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

Já nos sindicatos patronais o comportamento das demissões foi diferente. Eles empregavam cerca de 30 mil funcionários até dezembro de 2016 (fonte: Rais). O auge das dispensas nessas entidades aconteceu em meados daquele ano, com saldo negativo de 1,2 mil vagas em 12 meses, até setembro de 2016.

Silvestre lembra que o Dieese também foi atingido pela reforma trabalhista. Com 65% a 75% de sua receita dependente de recursos vindos dos sindicatos – e o restante de contratos com governos e órgãos públicos, o Departamento tem reduzido seus quadros. “Estamos projetando uma queda da receita sindical da ordem de 30%”, revela Silvestre.

Sistema S – dinheiro público para fins privados

No atual contexto de enfraquecimento das entidades de defesa da classe trabalhadora outra discussão ganha força: “como qualificar os trabalhadores nesse novo cenário?”. “Quando falamos de profissionalização, precisamos destacar o crescimento equilibrado do trabalho, emprego e renda. Esse tripé precisa ser estruturado”, aponta Carlesso, que, além de dirigente sindical, é presidente do Conselho Estadual do Trabalho.

A qualificação da classe trabalhadora no Brasil sempre foi um desafio. E o Sistema S é uma das ferramentas. Mas nem tudo são flores nessa relação, como mostra o livro “Caixa-Preta do Sistema S” (2014), do Senador Ataídes Oliveira, que traz os resultados da auditoria realizada a seu pedido pelos órgãos de fiscalização – Tribunal de Contas da União (TCU), Controladoria Geral da União (CGU) e Receita Federal.

O Senador identifica “pelo menos dois crimes” do Sistema S: falta da publicidade em seus atos, conforme exige a lei, e arrecadação direta de empresários, sem passar pela Receita Federal. Essa ausência de transparência nas contas do Sistema fere não apenas a Constituição Federal, mas também as Leis da Transparência (Lei Complementar 131/2009) e de Acesso à Informação Lei 12.527/2011).

“Não restou dúvida de que o chamado Sistema S é uma verdadeira caixa preta, que não respeita em nada o artigo 37 da Constituição Federal, que trata dos princípios básicos da coisa pública: impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade e legalidade. Nada disso vem sendo cumprido pelos entes ligados ao sistema S” – Senador Ataídes Oliveira (com informações via JusBrasil).

O Sistema S foi estruturado em 1942 para oferecer ensino, cultura e lazer. Essas entidades são financiadas por dinheiro arrecadado pelo governo. Em 2016, segundo divulgado pela Receita Federal, foram repassados R$ 16 bilhões em tributos para nove entidades privadas.

Esse dinheiro é derivado de contribuições e distribuído integralmente para as entidades do Sistema, já as empresas são obrigadas a pagar sobre o valor da sua folha de pagamento. Essa relação é chamada de “paraestatais”. As indústrias, por exemplo, recolhem 1% ao Senai, 1,5% ao Sesi, sobre a folha de pagamento. As empresas do comércio recolhem 1,5% ao Sesc.

O interessante desse sistema de qualificação é que, mesmo com todo esse aparato econômico, ele cobra do trabalhador. Por exemplo: se um pai de família tem interesse em fazer um curso técnico de Eletromecânica (dois anos de duração e período noturno) no SENAI, em Campo Largo, região industrial anexa a Grande Curitiba, ele vai desembolsar cinco parcelas de R$ 480,00.

“É inadmissível entidades receberem tanto dinheiro, seja da administração pública ou do setor privado, e ainda assim cobrar um valor abusivo da classe trabalhadora para se qualificar. Por isso é importante fortalecer os Institutos Federais que vêm promovendo ensino gratuito e de qualidade”, completa Carlesso.

Você sabe quanto arrecada o Sistema S?

De acordo com dados disponibilizados pela Receita Federal, os repasses da arrecadação federal ao Sistema S ficaram acima de R$ 16 bilhões em 2017.

::Sesc => R$ 4,89 bilhões (é o que mais recebe)

::Sebrae => R$ 3,296 bilhões

::Senac => R$ 2,738 bilhões

::Sesi => R$ 2,087 bilhões

::Senai => R$ 1,464 bilhão

::Senar => R$ 829,1 milhões

::Sest => R$ 498,6 milhões

::Sescoop => R$ 352,96 milhões

::Senat => R$ 312,9 milhões

A maior crítica ao Sistema é a falta de transparência. Há enorme pressão para que seja comprovada a destinação das verbas. Em 2013, através da Lei de Diretrizes Orçamentárias, com regras para o uso do dinheiro público, houve a obrigatoriedade dessas entidades de divulgar o quanto recebem de contribuições, além do destino dos recursos, da estrutura remuneratória dos funcionários, do nome dos dirigentes e dos membros do corpo técnico.

Em 2016, o TCU (Tribunal de Contas da União) alertou que nem todas essas entidades tinham sistema de auditoria (que confere a veracidade e qualidade das informações) interna e externa e que faltavam, em algumas delas, informações sobre o oferecimento de cursos gratuitos e detalhes sobre licitações” (via publicação do portal NexoJornal).

A verdade é que o Sistema S está em xeque. Será que há real interesse público que justifique o repasse de tanto dinheiro?

“Hoje quem quer fiscalizar os recursos públicos está sendo enfraquecido. Seja sindicato ou um órgão técnico, como é o caso do Dieese. Para mudar isso é preciso união da classe trabalhadora”, finaliza Adriano Carlesso, presidente do Sindimovec.

 

Por Regis Luís Cardoso.

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