Leonardo Boff: “Tem que ocupar as ruas”

 Para um dos maiores pensadores brasileiros, é preciso pressionar os políticos, usar as “mídias sociais para atacá-los diretamente, desmascará-los; e mostrar que eles estão fazendo política anti-nação, anti-povo”

Você se lembra daqueles filmes em que um jovem aprendiz encontra um sábio guru e começa a lhe perguntar sobre “o que é a vida?” ou “o que eu estou fazendo aqui?”, pois então, mesmo não estando tão jovem, ultimamente procuro algumas respostas. Já as perguntas, bom, essas não são tão filosóficas, na verdade, são bem simples e remetem a atualidade; que se apresenta com um grau de complexidade jamais visto, pelo menos por mim. Isso acontece, talvez, porque foi criada uma disputa confusa e polarizada na política, em que os lados têm a necessidade de criar líderes simbólicos e absolutos que representam uma verdade incontestável.

Foi com essas maluquices contemporâneas que cheguei ao prédio histórico da Universidade Federal do Paraná, na Praça Santos Andrade, em Curitiba; queria resolver essa salada reflexiva e para isso tentava selecionar algumas interrogações para Leonardo Boff. Quando soube que esse senhor estava na capital paranaense, não tive dúvidas: “vou bombardear o pilar da Teologia da Libertação com minhas indagações!”.

Leonardo Boff (78) é doutor em teologia pela Universidade de Munique, também professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Militante das causas ecológicas, é reconhecido mundialmente por ser porta voz de muitos movimentos sociais. Entre um número extenso de obras premiadas, o pensador brasileiro escreveu a “The Tao of Liberation: Exploring the Ecogoy of Transformation” (O Tao da Libertação: Explorando a Ecologia da Transformação), em parceria com o canadense Mark Hathaway e com prefácio de ninguém menos que Fritjof Capra.

Por isso, com tanto ‘honoris causa’ no currículo, reconhecimento em diversas partes do mundo, Boff tornou-se o alvo ideal para desvendar minhas dúvidas em relação ao nosso dia a dia. Pode ser que vários militantes já disseram algo do tipo: “tem que ocupar as ruas, as praças, discutir, em grupos, o Brasil que nós queremos. Convocar esses políticos para se envolver nas discussões de base, usar, especialmente, as mídias sociais para atacá-los diretamente, desmascará-los; e mostrar que eles estão fazendo política anti-nação, anti-povo, porque quase todas as medidas afetam os mais pobres, os trabalhadores, as mulheres, etc”, mas Leonardo Boff faz dessa declaração uma injeção de ânimo.

E essa energia foi aplicada em nosso papo, pois fomos da militância política a geopolítica, da religião ao pequeno agricultor; com informações variadas, quase que em fragmentos; e não é esse o mundo sem fronteiras que alguns pedem? Ou será que fomos longe demais? Vai saber…

Quando sentei ao lado de Leonardo Boff lá no salão nobre de Ciência Jurídicas da UFPR e liguei meu gravador, a primeira pergunta que me veio a cabeça foi sobre militância:

Leonardo, você concorda que essa palavra nunca carregou tanta esperança quanto agora? Qual a importância, nesse atual contexto, para o termo militância?

Leonardo Boff: Olha, nós estamos num contexto grave no Brasil. Se não houver militância (que venha das bases, dos movimentos sociais, daqueles que estão sendo atingidos pela nova legislação trabalhista e pela questão da previdência social, porque em tudo isso há um regresso muito grande), articulada, muito forte, que pressione os poderes de Brasília, não vamos sair muito bem dessa crise.

Então, é fundamental que os movimentos sociais, Movimento dos Trabalhadores Sem Terras (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), grupos de mulheres, de negros, todos esses movimentos que marcam o Brasil (que é o país que mais movimentos sociais tem no mundo), façam pressão. Eu acho que essa pressão obrigará deputados e senadores a fazer reformas que não sejam tão maléficas para os trabalhadores e para os pobres.

 

Já que você citou a reforma da previdência e trabalhista, o que se vê nesses projetos é um verdadeiro ´tratoraço´, por parte do governo federal, contra os trabalhadores. Acredita que é possível uma grande unidade de trabalhadores pressionar e barrar essa agenda exclusivamente benéfica ao capital?

LB: Eu acho que é uma questão de articulação. Porque são muitos movimentos e eles não renunciam a sua identidade. Mas tem que fazer uma frente ampla entre eles, junto com setores de partidos que são progressistas, que apoiam as mudanças. Esses poderão impor uma agenda e obrigar (os políticos) a fazer uma reforma política e tributária. Resgatar, novamente, a centralidade da escola, da educação, e recuperar aquilo que foi abolido, que é o direito dos negros, das mulheres e daqueles que tinham representatividade junto ao governo. Tudo isso foi praticamente abolido.

Em termos econômicos, segundo vários analistas, especialmente Pochmann, que é um grande especialista na questão do trabalho, nós chegamos ao nível de 1910! Economicamente é um regresso terrível. O que mostra que aqueles que deram o golpe, querem levar a agenda deles até o fim e de forma irreparável.

 

Esse regresso econômico que você comentou, vem no mesmo momento em que uma onda conservadora ganha voz. Como combater isso?

LB: Acho que é mais ou menos como uma panela de pressão, sabe? Eles só mudam se houver grande pressão, que vem de baixo, que os deslegitima. Porque grande parte deles ou são réus ou são acusados ou são corruptos. Então, primeiro é derrubar a lista única, porque é atrás da lista única que eles se escondem; podem se reeleger e com isso ganham o foro privilegiado.

Também combater essas medidas políticas que acabam privilegiando a eles. Reforçar a continuidade da Lava-Jato, pois, apesar dos abusos e da seletividade em termos de atacar muito o PT, ela está chegando a todos os partidos. Está mostrando que essa forma de organizar a economia e a política, a base de negociatas, não é mais possível. Isso tem que vir de baixo, como grito do oprimido, a nação não aceita mais isso.

Tem que ocupar as ruas, as praças, discutir, em grupos, o Brasil que nós queremos. Convocar esses políticos para se envolver nas discussões de base, usar, especialmente, as mídias sociais para atacá-los diretamente, desmascará-los; e mostrar que eles estão fazendo política anti-nação, anti-povo, porque quase todas as medidas afetam os mais pobres, os trabalhadores, as mulheres, etc. E aqueles avanços sociais que foram alcançados no governo Lula não podem ser perdidos. Foi a única revolução pacífica que se fez nesse país e ela não pode ser anulada.

 

Você acabou de falar das mídias sociais e isso nos remete a nova geração. Gostaria de saber se nas suas andanças, tem identificado novos líderes?

LB: Estou ficando surpreso. Porque em função do meu trabalho dando palestra em vários lugares do Brasil, sempre encontro grupos de jovens politizados e que discutem sobre o Brasil que nós queremos, a partir de baixo. Especialmente jovens do PT, com lideranças que me surpreendem pelo nível de consciência, de discurso e de enfrentamento. É por aí que eu acho que vai surgir uma nova geração de políticos, porque essa atual geração está velha e desmoralizada. O próprio PT tem que fazer uma autocrítica, porque ainda não foi o suficiente. Possivelmente no próximo congresso do partido será feito isso, para recuperar a credibilidade.

Um candidato só ganha se ele tem carisma e inspira confiança. Se o povo desconfia, não vota. Se não tem carisma, entusiasmo, paixão pela mudança, também não ganha. Eu estou vendo que essa crise tem um lado positivo, que é o de estar despertando a população que sente na pele os efeitos nefastos dessas medidas (do atual governo). Quem era pobre está ficando miserável, quem tinha saído da fome, está voltando. Eles aguentam enquanto são adultos, mas quando veem os filhos, as crianças, passando fome, aí não, aí eles saem às ruas. Aí podem vir a fazer grandes protestos.

 

Aproveitando que você falou da questão da condição social, podemos pegar uma voz mais simbólica e que vem representando, através de uma fala progressista, os menos favorecidos. Falo especificamente do Papa Francisco. Ele, hoje, é uma voz muito forte e até reformista dentro da igreja católica. Você acha que esse discurso ajuda os movimentos sociais tanto no Brasil quanto na América Latina?

LB: Olha, o Papa Francisco, hoje, talvez seja o maior líder em dois campos: religioso e político. No religioso ele vem favorecendo o diálogo, o encontro das igrejas e religiões; não discrimina ninguém, nem tem o conceito de exclusão, como se só a igreja tivesse a verdade, pois todo mundo é portador da verdade. E em termos políticos, tem uma liderança fantástica, porque denuncia diretamente o capitalismo como antivida. Chegou a dizer que o verdadeiro terrorismo não é muçulmano, é o capitalismo, pois ele pune grande parte da humanidade, idolatra o dinheiro e sacrifica a terra.

Sua liderança é coisa única na história do papado. Ele organizou quatro encontros com lideranças populares e sociais mundiais, três em Roma e um em Santa Cruz de la Sierra, com três temas fundamentais, os três T’s: Terra, Teto e Trabalho. E ele conclamou os trabalhadores: “não esperem nada de cima, vocês tem que ser os protagonistas, trabalhem criando cooperativas, produzam de uma forma diferente, tenham um consumo mais humanitário e solidário, renove a política com participação e não só com representação”. Ele estimula, favorece e apoia esses movimentos sociais no mundo inteiro.

Inclusive, de forma indireta, ele tomou partido aqui no Brasil. E eu vi, eu vi, ele escreveu uma carta a presidenta Dilma, com quem se entendia muito, apoiando ela. Dizendo a ela que se mantivesse firme, agisse sempre na justiça e na retidão. Então, é alguém que tem parte, não é neutro, ele tem um lado, que é o lado dos pobres e dos vulneráveis.

 

Ainda no campo dos nomes que geram grande repercussão, temos, por outro lado, alguém que simboliza o fenômeno da chamada pós-verdade, que é o Donald Trump, presidente dos EUA, que segue uma agenda oposta aos discursos do Papa. Como é possível pensar numa contrainformação diante dessa figura?

LB: Trump é o maior risco para a humanidade. O grande prêmio Nobel de economia, Paul Krugman, disse: “não é impossível que ele use armas nucleares”. E o atual presidente dos EUA já disse por duas vezes que nos últimos tempos seu país perdeu todas as guerras: a Guerra no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque. Ele quer ganhar uma guerra e possivelmente vai ser contra a Coreia do Norte, que também tem armas nucleares. Um secretario de estado norte-americano foi a Coreia do Sul e disse que se a Coreia do Norte continuar lançando foguetes, os EUA vão pulverizar aquele país.

Então é um homem perigoso para a humanidade, porque não é do mundo da política, vem do mundo dos negócios. É extremamente auto centrado e tem um ego maior que o próprio país, não segue as diretrizes do partido (tal ponto que está criando um problema com os republicanos), segue o caminho dele. Só que as instituições americanas são sólidas, a oposição é sensata e ele, em muitos pontos, tem recuado. Mas é um homem extremamente vaidoso, showman. Esse “American First” (Primeiro a América) significa, na verdade, “Só a América”.

E os EUA não podem retirar-se das grandes alianças do mundo, porque senão pode haver guerras locais, países como o Irã, por exemplo, querem se estender, Israel quer atacar e destruir o Irã, a Ucrânia quer levar a guerra a frente. Há 40 frentes de guerra pelo mundo e os EUA é um ponto de equilíbrio; ele se retirando deixa um campo aberto para a violência, que pode ser cada vez mais mortífera, com armas cada vez mais letais.

 

Para finalizar, não poderia deixar de perguntar como você tem visto a luta no campo hoje? Já que essa é uma das suas bandeiras históricas como militante.

LB: Vocês (pequenos agricultores) têm que ter a consciência de que alimentam o povo brasileiro, 70% do que está na nossa mesa são vocês que produzem, não é o agronegócio; esse exporta e não produz nada pra comer. Então, o pequeno agricultor tem que ter essa consciência. Se puder criar uma agricultura solidária, com cooperativas, trabalhar de forma mais articulada, usar os conhecimentos novos da ciência (não as questões de transgênicos, agroquímicos e agrotóxicos, que o Brasil é o maior utilizador deles), utilizar as forças da natureza, os adubos naturais, respeitar os ciclos da natureza, deixar que ela se recupere, tudo isso eu acho que tem futuro no mundo inteiro.

Há duas semanas eu estive no Rio Grande do Sul, apoiando um grupo do MST que vai produzir 55 mil toneladas de arroz orgânico! Movimentos como esse existem por todas as partes e isso nós devemos apoiar, estar ao lado de vocês e cobrar a reforma agrária, para garantir o chão. Cobrar também assistência técnica, silos e preços. Isso é questão de se organizar, pressionar e se unir a outros grupos, que os apoiam, fazendo ainda mais força.

 

Por Regis Luís Cardoso (Foto: Thea Tavares).

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